21 SANTA TRIFINA E O REI ARTUR: O TEATRO MEDIEVAL BRETÃO E A COLETA DA LITERATU

21 SANTA TRIFINA E O REI ARTUR: O TEATRO MEDIEVAL BRETÃO E A COLETA DA LITERATURA ORAL CÉLTICA NA BRETANHA DO SÉCULO XIX Ana Donnard* Universidade Federal de Uberlândia RÉSUMÉ: La tragédie Sainte T rifina et le roi Arthur (Santez T ryphina hag ar Roue Arthur) possiblement reprend une légende hagiographique du répertoire de la littérature orale bretonne de fond médiéval très ancien et la reconfigure dans une pratique théâtrale particulière à la Bretagne rurale du XIX ème. Des agriculteurs et des artisans demi-lettrés se présentaient lors des fêtes populaires avec leurs troupes, fières de jouer du grand théâtre devant les touristes parisiens qui ne voyaient, pourtant, dans ces spectacles, que l’expression du pittoresque et du rudimentaire folklore celtique des paysans. Mais la tragédie en trois jours ne témoigne pas d’une culture populaire inculte, bien au contraire. L’étonnant texte, remanié plusieurs fois par la main des curés ou des seigneurs plus au moins lettrés, était mémorisé par les paysans illettrés – eux, bien sûr, habitués à “mémoriser” leur littérature depuis si longtemps. Dans cet article nous essayons de présenter ce contexte entre oralité et tradition écrite à titre d’introduction d’une étude plus approfondie à venir. Sachant qu’il existe très peu d’études sur la littérature celtique et particulièrement bretonne au Brésil, cet article pourra être, nous l’espérons bien, utile. MOTS-CLÉS: littératures céltiques; théâtre breton; études médiévales. * anadonnard@ileel.ufu.br nuntius antiquus 22 Belo Horizonte, v. VII, n. 1, jan.-jun. 2011 ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online) Resumo da tragédia Resumo da tragédia Resumo da tragédia Resumo da tragédia Resumo da tragédia rifina, princesa de Hibérnia (Irlanda), é a esposa de Artur, rei dos Bretões. Seu irmão Kervoura, ajudado pela parteira da rainha, sequestra o filho desta e consegue convencer o rei dos Bretões de que T rifina havia assassinado a criança. Na verdade, Kervoura havia enviado o bebê à Inglaterra para salvar o rei inglês, que, no seu leito de morte, deveria comer a carne fresca de um recém-nascido, bebendo também o seu sangue. E, para que este “remédio” o curasse, a criança em questão deveria ser fruto de uma união da realeza. A recompensa seria a mão da princesa inglesa para Kervoura, que assim teria o poder sobre as duas Bretanhas – a insular e a continental. Mas o rei Artur, antes de ordenar a execução de T rifina, conclama os Bretões a realizarem um “processo de justiça”, que significava oferecer a chance de defesa à rainha. Segue- se, então, um longo périplo de Trifina em busca de provas de sua inocência, mas seu irmão consegue fabricar falsas evidências criando uma armadilha para a santa que, acreditando ir ao encontro de seu irmão Kervoura, é violentada pelos soldados do rei, os quais fazem crer ao soberano que ela, na verdade, teria seduzido o mais novo deles... T rifina é então condenada à decapitação, entretanto, na hora extrema surge seu filho e a livra do suplício. Este filho havia sido salvo pelo bispo de São Malo que, por sua vez, tinha-o capturado das mãos de piratas pagando uma alta quantia. Explica-se, assim, o fato de o rei da Inglaterra ter morrido, pois o bebê que fora oferecido em sacrifício era um substituto encontrado por Kervoura entre camponeses. Liberada pelas mãos de seu filho da decapitação e da desonra, T rifina, santificada pelo sofrimento que lhe fora imposto pelo destino, encontra a felicidade ao lado de seu esposo, de seu filho e do povo que a amará para sempre. Os traidores serão enforcados depois de passarem pelos suplícios da tortura e a Bretanha, liberada de seus traidores, encontrará de novo a ordem e a paz. Os anjos e seus milagres – atores no processo – serão ainda mais adorados pelos Bretões, fiéis devotos cristãos. Comentário Comentário Comentário Comentário Comentário O teatro bretão é um grande desconhecido do público internacional. Sabemos muito pouco desta tradição pela via mesma de seus compatriotas. Os estudos em literaturas célticas ainda não constituíram o acervo deste longo percurso de aventura teatral que, como tudo que toca a periferia oeste da Europa, está sujeito a T 23 DONNARD, Ana. Santa Trifina e o rei Artur:..., p. 21-30 controvérsias e discussões intermináveis sobre o valor de uma ou outra versão, sobre os remanejamentos (reescrituras) mais ou menos bem- sucedidos ou sobre obras que seriam, supostamente, de falsários. É necessário notar que existiam em 1983 até 250 manuscritos inéditos nas bibliotecas da Bretanha e do País de Gales, segundo Gwennolé Le Menn. 1 A dificuldade de entendimento entre a cultura erudita e a cultura popular tampouco facilitou o percurso historiográfico deste teatro medieval que, apesar do caráter oral e popular, se pautou também pelas regras da literatura escrita, como veremos mais adiante. Françoise Morvan, em seu texto de apresentação da tragédia Santa Trifina e o Rei Arthur (edição bilíngue bretão-francês), 2 relata-nos parte deste conflito entre letrados e iletrados na Bretanha céltica quando Francis-Marie Luzel, folclorista ativo na coleta da literatura bretã, faz vir para o Congresso Céltico de 1867 a troupe de Pluzunet. Segundo a autora, a encenação é vista pelo grupo de filólogos e folcloristas, dentre os quais Gabriel Milin, como um fiasco. Ela designa este grupo como o “clã dos bardos”. Podemos entender que a autora se refere ao círculo formador da sociedade bárdica de 1843, chamada de Breuriez-Breizh, que reunia os estudiosos bretonantes (falantes de língua bretã) e tinha por objetivo criar uma renovação no meio acadêmico e intelectual, com a finalidade de recuperar o patrimônio oral ainda por ser coletado. O grupo compunha-se de François-Marie Luzel, Gabriel Milin, Prosper Proux, Olivier Souvestre, entre outros, tendo como líder ou penn-sturier Hersart de la Villemarqué. A autora do texto de apresentação da obra e a tradutora desta tragédia nos reporta ainda que somente Henri Martin, historiador vindo de Paris para o Congresso e não entendedor do bretão, chorava emocionado… Prosseguindo, Françoise Morvan afirma que este teatro popular bretão de origem medieval era um produto de “bárbaros” aos olhos dos letrados da ciência erudita romanista. Anatole Le Braz defenderá anos mais tarde sua tese sobre o teatro céltico na Universidade de Rennes (1905) diante do júri composto por Georges Dottin e Joseph Loth. Naquela época, os estudos literários célticos dividiam-se entre os representativos do saber institucional universitário, tidos como “celtizantes”, e aqueles que, fora dos muros 1 Le Menn, G. Histoire du théâtre populaire breton. XVe-XIXe siècle. Rennes: Institut Culturel de Bretagne/ Skol et Datsum, 1983. 2 Luzel, F.-M. Sainte T ryphine et le roi Arthur. T extes établis et presentés par Françoise Morvan. Rennes: PUR, 2003. nuntius antiquus 24 Belo Horizonte, v. VII, n. 1, jan.-jun. 2011 ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online) das academias, clamavam por uma literatura bretã singular e céltica, detentora de memória entre saber letrado e oralidade. Dentro desse contexto de euforia romântica que se havia espalhado pela Europa, tais folcloristas foram designados como “celtomaníacos” – estigma que lhes valeria muitos dissabores nos anos seguintes. Entre os “celtomaníacos”, folcloristas e etnólogos, estavam também os representantes de um neodruidismo romântico que, como as sociedades de folcloristas, pregavam o retorno às fontes druídicas de uma Bretanha esquecida. O grupo dirigido por Hersart de la Villémarqué – o Breuriez-Breizh – dizia-se não-druídico, mas estava ligado de maneira consistente ao grupo neodruídico da Gorseed do País de Gales, fundado em 1838 pelo arquidruida Cawrdaf. No contexto do Bretonismo – movimento bretão pela recuperação da cultura céltica da Bretanha e do regionalismo francês, foi fundada a primeira sociedade druídica bretã, logo após a exposição Universal de Paris, em junho de 1900, tendo como primeiro arquidruida Jean Le Fustec e, em seguida, Yves Berthou, poeta, folclorista e visionário cuja obra não deve ser negligenciada. Porém, a recuperação de mitos de um passado envolto em brumas de mistério e a construção de um “mundo druídico” não escapará à crítica irônica e mesmo sarcástica: os neodruidas escritores e poetas foram ridicularizados pelos universitários, o que teve por consequência que, mesmo hoje, a literatura resultante do movimento literário e folclórico que podemos chamar de neodruidismo permaneça à margem. 3 As controvérsias e as divergências entre aqueles que trabalhavam no terreno da especulação etnológica e historiográfica e aqueles legitimados pelo rigor científico acadêmico fizeram correr muita tinta. Os debates sobre a literatura bretã e sua importância como arquivo de memórias de um passado céltico, ocorridos entre os “bardos druidas” de um lado e os universitários de outro, no contexto do regionalismo bretão, incluindo nesses grupos os eruditos de origem nobre e/ ou clerical, configuraram de maneira decisiva as bases do celtismo – corrente histórico-literária bastante eclética no tocante à sua formação político- ideológica. Esta corrente tinha como base, sobretudo, a revisão da historiografia literária europeia, antecipando as discussões sobre o cânon 3 Sobre o neodruidismo como movimento literário, cf. Donnard, A. As origens do neodruidismo: entre tradição céltica e pós-modernidade. Revista de Estudos da Religião. São Paulo, vol. II, p. 88-108, 2006 - disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/ rv2_2006/p_donnard.pdf>, acesso em 10 de outubro de 2010. 25 DONNARD, Ana. Santa Trifina e o rei Artur:..., p. uploads/Litterature/ 17235-texto-do-artigo-48366-1-10-20200123.pdf

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